Manter uma criança ou um adolescente longe de casa, sem a autorização de quem tenha a sua guarda legal, já é grave e preocupante quando ocorre dentro do país – situação que pode demandar medidas judiciais urgentes, como a busca e apreensão do menor. Contudo, quando o caso extrapola as fronteiras nacionais, o sequestro ganha complicações adicionais e passa a exigir a colaboração entre os países.
Visando dotar as autoridades de meios mais eficientes para lidar com essa realidade complexa, foi aprovada em 1980 a Convenção de Haia sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças, incorporada pelo Brasil a partir do Decreto 3.413/2000, que colocou o país no sistema internacional de combate a ilícitos desse tipo.
De acordo com a Convenção de Haia, é considerado sequestro internacional retirar menor de 16 anos de sua residência habitual e levá-lo para outro país sem autorização de quem detenha a sua guarda. Também se encaixam na definição de sequestro os casos nos quais o menor viaja ao exterior com autorização e é retido além do prazo autorizado, em violação ao direito de guarda.
No julgamento dos processos sobre sequestro internacional, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem buscado aplicar as normas da convenção de maneira a privilegiar o bem-estar e o primordial interesse da criança ou do adolescente.
Pedido de retorno pode ser indeferido se menor não quiser voltar
O pedido de retorno imediato da criança retida ilicitamente em outro país por um dos genitores pode ser indeferido, mesmo que transcorrido menos de um ano entre a retenção indevida e o início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa, se o menor – com idade e maturidade suficientes para compreender a situação – estiver adaptado ao novo meio e manifestar seu desejo de não regressar ao domicílio no estrangeiro. O entendimento foi estabelecido pela Primeira Turma.
A União ajuizou ação contra uma mulher para buscar, apreender e repatriar para a Argentina seus dois filhos menores. Em 2002, a mulher, seu marido e os filhos se mudaram para o Brasil, mas o pai retornou à Argentina por motivos de trabalho. A mãe, então, informou que não retornaria com as crianças, o que levou o pai a acionar as autoridades argentinas e brasileiras, conforme a Convenção de Haia, para a restituição dos filhos.
O Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2) julgou o pedido improcedente, por entender que não houve a retenção ilícita das crianças no Brasil, e concluiu que elas estavam integradas ao novo ambiente.
O relator do recurso no STJ, ministro Sérgio Kukina, destacou que, nos termos do artigo 12 da Convenção de Haia, a autoridade central (encarregada de dar cumprimento às obrigações do pacto) deve determinar o retorno imediato da criança quando for acionada dentro de um ano entre a data da transferência ou da retenção indevida e a data do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado em que a criança esteja localizada.
Contudo, o ministro destacou que, em algumas situações, deve ser dado maior peso ao artigo 13 da Convenção de Haia, que permite que a autoridade judicial ou administrativa recuse o retorno se o menor se opuser e tiver maturidade suficiente para expressar suas opiniões de forma significativa. O magistrado apontou que essa abordagem ainda está alinhada com os princípios da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança de 1989, que, em seu artigo 12, assegura à criança o direito de ser ouvida em questões que a impactam diretamente.
Brasil deve arcar com as custas do processo de restituição
Sob relatoria do ministro Og Fernandes, a Segunda Turma decidiu que o Estado brasileiro deve arcar integralmente com as custas e despesas do processo de restituição, independentemente da condição do requerente ou do requerido, ressalvando-se apenas a faculdade de exigir o pagamento das despesas com o retorno da criança (artigo 26 da Convenção de Haia).
No caso, a União interpôs recurso especial questionando a decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) que lhe imputou a responsabilidade de adiantar os honorários periciais que foram postulados por seu assistente, o pai de uma criança retida irregularmente pela mãe no Brasil. Para o ente estatal, como ele não foi o responsável pela produção de tal prova, deveria ser aplicado o dispositivo do artigo 33 do Código de Processo Civil (CPC) de 1973.
No STJ, Og Fernandes ponderou que, havendo a Convenção de Haia regulado inteiramente a matéria, descabe o argumento da União de que se deveria aplicar a regra do artigo 33 do CPC/1973, uma vez que o texto convencional é regramento especial, com preferência sobre a norma geral do direito processual civil brasileiro – a qual somente se aplicaria no caso de lacuna, inexistente na hipótese, e desde que houvesse compatibilidade material.
O relator explicou que como o Brasil, ao aderir ao texto da convenção, não opôs reserva ao regramento contido no parágrafo 2º do artigo 26, o país assumiu o ônus de arcar com as despesas processuais, independentemente da condição do requerente ou do requerido.
"Consequentemente, as custas processuais não devem ser pagas pelo requerente, nem deve haver ressarcimento destas pelo requerido em caso de sucumbência. Mesma interpretação se estende às demais despesas processuais, especialmente honorários periciais de psicólogos e intérpretes, cartas rogatórias e honorários advocatícios", concluiu.
Compete à Justiça Federal julgar busca e apreensão proposta pela União
O ministro Ricardo Villas Bôas Cueva relatou conflito de competência no qual o STJ estabeleceu que a Justiça Federal é competente para o julgamento tanto do pedido de busca e apreensão de menores proposto pela União (artigo 109, inciso I, Constituição Federal), com fundamento na Convenção de Haia sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças (artigo 109, inciso III, da CF), como para definir a guarda das crianças nos termos dos artigos 12 e 17 do tratado internacional.
Duas menores de idade, residentes na França, vieram ao Brasil acompanhadas pela mãe e permaneceram no país sem a permissão do pai, o que o levou a comunicar a retenção indevida das menores à polícia francesa. No Brasil, a mãe requereu à Justiça estadual a separação de corpos e a guarda provisória das filhas, além de medida protetiva contra o homem, buscando a guarda definitiva e a permanência das menores no Brasil. A Vara de Família e Sucessões concedeu liminarmente a separação de corpos e a guarda provisória à mãe.
O homem concordou com o divórcio, mas informou que uma sentença da França lhe deu o poder parental exclusivo sobre as crianças e determinou que a residência delas seria com ele. A União, então, propôs ação de busca e apreensão das menores, que foi julgada procedente pelo juízo federal, o qual determinou o retorno imediato das crianças à França com base na Convenção de Haia.
Ricardo Villas Bôas Cueva explicou que, de acordo com o artigo 12 da convenção, quando se passou menos de um ano entre a retenção ilícita da criança e o início do processo de repatriação, a autoridade judicial ou administrativa do lugar onde a criança se encontra deverá ordenar o seu retorno imediato. "No caso, restou verificado pelo juízo federal que, entre a retenção indevida das filhas do ex-casal, nascidas na França, e o ajuizamento da presente demanda transcorreram menos de 12 meses, motivo pelo qual se deve aplicar o que foi disposto na Convenção de Haia", disse.
O relator destacou que, apesar de o juízo estadual pleitear a competência para todas as questões de direito de família envolvendo as menores e seus pais, o STJ já definiu que a Justiça Federal é a responsável por julgar casos baseados em tratados internacionais, como a Convenção de Haia, conforme estabelecido pelo Decreto 3.413/2000 e pelo artigo 109, inciso III, da CF.
Conforme o artigo 17 da própria convenção – lembrou o ministro –, uma decisão de guarda tomada ou reconhecível no Estado requerido não justifica a recusa do retorno da criança, de modo que a decisão da Justiça Federal poderia ser cumprida integralmente. "Assim, os pedidos de guarda definitiva formulados pela mãe das crianças, tanto na medida cautelar de separação de corpos, como na ação de divórcio, que tramitam perante o juízo estadual suscitante, deverão ser conhecidos e julgados pela Justiça Federal, e as demais questões devem ser dirimidas no juízo de família, competente para julgar os pedidos de divórcio e pensão alimentícia", concluiu.
Quem se opõe ao retorno do menor deve provar exceções legais
No julgamento de recurso especial, a Segunda Turma decidiu que a responsabilidade de provar a existência de exceções que justifiquem a permanência do menor no país cabe a quem se opõe ao seu retorno.
Dois adolescentes com 17 e 15 anos, detentores de dupla cidadania, moravam na Irlanda sob a guarda compartilhada da mãe brasileira e do pai irlandês. Durante viagem ao Brasil, a mãe comunicou ao pai que os filhos não mais retornariam. Diante disso, a União propôs ação de busca, apreensão e restituição dos menores, visando entregá-los à autoridade central brasileira para serem devolvidos à Irlanda, conforme estabelecido pela Convenção de Haia.
Após o Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2) determinar que os adolescentes retornassem ao país europeu, a mãe interpôs recurso especial, sustentando que o acórdão teria violado diversos artigos da convenção e do Estatuto da Criança e do Adolescente.
No STJ, o ministro Humberto Martins, relator, comentou que, embora o caso configurasse ilícita retenção transfronteiriça dos menores, deveriam ser observadas as exceções previstas no artigo 12 da Convenção de Haia. Segundo o ministro, uma vez comprovada a existência de uma dessas exceções, o julgador ou a autoridade têm a prerrogativa de decidir pela devolução ou permanência da criança, exercendo sua discricionariedade.
O ministro apontou que uma dessas exceções diz respeito ao fato de que a convenção não mais produz efeitos quando a pessoa completa 16 anos, conforme estipulado pelo artigo 4º. Dessa forma, Martins esclareceu que, na hipótese dos autos, a convenção não operaria seus efeitos em relação à adolescente de 17 anos, mas ainda afetaria a situação do jovem de 15.
"Mas, a essa altura, repatriar apenas o irmão, enquanto a irmã permanecerá no Brasil, soa, a princípio, prejudicial ao melhor interesse do jovem, o qual, não bastasse ter sofrido a alienação reprovável promovida pela sequestradora, seria submetido, agora, ao distanciamento geográfico da irmã. O adolescente já conta, certamente, com discernimento suficiente para justificar a sua oitiva acerca do seu retorno ou não ao país de residência habitual, como faculta o artigo 12, alínea 'b', da convenção. Afinal, o interesse maior da criança é o objetivo principal almejado pelo documento internacional em comento", disse o ministro.
Concessão da guarda à sequestradora levou à extinção da busca e apreensão
Em 2022, sob relatoria da ministra Regina Helena Costa, a Primeira Turma concluiu que, sobrevindo a concessão da guarda em favor da mãe, por decisão da Justiça do país de residência habitual da criança, torna-se desnecessária a ação de busca e apreensão da menor que vinha sendo mantida no Brasil ilicitamente.
O pai moveu a ação pretendendo o retorno da filha para Portugal, após ela ter sido ilegalmente retida no Brasil pela mãe. Ele fundamentou seu pedido no artigo 12 da Convenção de Haia, que determina o retorno da criança ao país de sua residência habitual para resolver questões como guarda, visitação e alimentos. Mas, no curso dessa ação movida pelo pai, a Justiça portuguesa decidiu que a menor deveria permanecer no Brasil, sob a guarda da mãe.
A ministra Regina Helena destacou que, com a decisão do tribunal português, impunha-se a extinção do processo no Brasil, sem resolução de mérito.
Segundo a relatora, após o encerramento da ação de regulação das responsabilidades parentais em Portugal, o envolvimento do Judiciário brasileiro se tornou desnecessário, já que foi determinado que a criança poderia ficar no Brasil com sua mãe.
"A ação de busca e apreensão originária tornou-se desnecessária, deslegitimando a instauração válida do processo. Consoante o entendimento desta corte, o interesse processual é identificado pela análise do binômio necessidade-utilidade. O aludido requisito processual se faz presente quando a tutela jurisdicional se mostrar necessária à obtenção do bem da vida pretendido e o provimento postulado for, efetivamente, útil ao demandante", afirmou.
Perícia para avaliar adaptação do menor nem sempre é necessária
A Primeira Turma considerou desnecessária a realização de perícia psicossocial para avaliar a adaptação do menor ao ambiente em que foi posto após a retenção ilícita, se o fato a ser provado não for capaz de influenciar a decisão da autoridade sobre o retorno do menor ao país de origem.
Uma criança, que vivia habitualmente no Canadá, foi trazida ao Brasil pela mãe e não retornou conforme o planejado. Em resposta a essa situação, o pai solicitou judicialmente o retorno da filha à sua residência habitual. Como a mãe se recusou a cooperar, a União ajuizou ação de busca e apreensão com base na Convenção de Haia, 181 dias após a retenção da criança.
Ao manter a decisão de primeiro grau que ordenou o retorno, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) dispensou a realização de perícia para avaliar a adaptação do menor à vida no Brasil e os possíveis impactos psicológicos de sua volta ao Canadá. Inconformada, a mãe recorreu ao STJ, alegando que a negativa ao seu pedido de produção de prova pericial violaria o artigo 12 da convenção.
A ministra Regina Helena Costa, relatora, salientou que o artigo 12 da convenção apenas admite a verificação da adaptação da criança ao novo ambiente, para onde foi levada ilicitamente, quando o pedido de busca e apreensão ocorrer mais de um ano após a data da transferência ou da retenção indevida. Ou seja, no caso de retenção nova, não é possível invocar eventual adaptação da criança como exceção à regra do retorno imediato.
Além disso, para a ministra, o "risco grave" mencionado no artigo 13, alínea "b", do tratado internacional justifica a exceção ao retorno da criança à sua residência habitual somente em casos de ameaças ou perigos complexos e prolongados, entre eles, conforme a lei, risco de danos "de ordem física ou psíquica" e exposição a uma "situação intolerável".
"Não engloba, portanto, os naturais 'abalos psicológicos' que poderão advir de seu afastamento da genitora subtratora, ou do ambiente em que foi por ela inserido", ponderou.
"Diante desse contexto, em nada se faz necessária a perícia pleiteada pela recorrente, pois a adaptação do menor ao meio, que se deseja provar, não pode servir de exceção à regra do retorno imediato da criança subtraída ao seu local de residência habitual, consoante os termos do artigo 12, do tratado internacional sobre o tema, bem como da aludida Resolução 449 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)", afirmou.