O Ministério Público Federal (MPF) requer ao Supremo Tribunal Federal (STF) a declaração de inconstitucionalidade de regra prevista no Decreto 11.302/2022 que concede indulto natalino a todos os condenados por crimes, cuja pena privativa de liberdade prevista na legislação não supere 5 anos. Para o procurador-geral da República, Augusto Aras, o artigo 5ª da norma ampliou, de forma excessiva e desproporcional, o perdão a um universo extenso de tipos penais, sem estabelecer critérios mínimos de concessão. Nesse sentido, contraria a Constituição Federal e tratados internacionais de direitos humanos ao ofender a separação de Poderes, suprimir a eficácia da persecução penal e contribuir para a impunidade.
Na Ação Direta de Inconstitucionalidade 7.390, o PGR pede ainda a concessão de liminar para suspender imediatamente a eficácia do dispositivo questionado, como forma de evitar o esvaziamento maciço de uma série de decisões condenatórias e o desencarceramento em massa de condenados. No documento, Aras ressalta que a norma admite o perdão presidencial da pena de forma indiscriminada a um amplo rol de crimes previstos nos códigos Penal e Eleitoral, na Lei das Eleições, no Estatuto do Desarmamento e na Lei de Crimes Ambientais, entre outras legislações criminais, sem exigir cumprimento de tempo mínimo da pena de prisão aplicada pela Justiça.
Isso inclui, por exemplo, homicídio culposo, lesão corporal grave, posse irregular de arma de fogo de uso permitido, caça ilegal, desmatamento, boca de urna, divulgação de fatos sabidamente falsos na propaganda eleitoral, entre muitos outros. Outro problema apontado por Aras é que, nos casos de condenação por vários crimes, o limite de cinco anos adotado para a concessão do benefício leva em consideração a pena máxima prevista na lei para cada um dos ilícitos cometidos e não o total aplicado na sentença. Para o PGR, essa possibilidade “premia com excessiva generosidade” aqueles que cometeram quantidade maior de crimes, uma vez que fica perdoada a totalidade da condenação, independentemente da punição concretamente imposta na sentença.
O PGR lembra que, entre 1988 e 2017, o indulto coletivo foi progressivamente ampliado, permitindo beneficiar cada vez mais condenados. No entanto, os decretos anteriores sempre restringiram o benefício a uma pena máxima aplicada na sentença condenatória e impuseram o cumprimento de uma fração mínima da pena estipulada. O Decreto 11.302/2022 foi na contramão dessa sistemática adotada nos anos anteriores, conforme pontua o procurador-geral da República.
Caso Daniel Silveira – Na ADI enviada ao STF, Augusto Aras salienta que o exame de constitucionalidade do artigo 5º do Decreto 11.302/2022 não se confunde com o caso do indulto concedido ao ex-deputado federal Daniel Silveira. Segundo o PGR, o perdão invalidado pela Suprema Corte - em decisão proferida na última semana que divergiu do posicionamento do MPF - tratava-se de ato concreto estritamente político e dentro dos limites impostos no texto constitucional. Por esse motivo, na avaliação de Aras, o ato não poderia se submeter ao controle do Poder Judiciário.
Já o dispositivo do Decreto 11.302/2022 é ato normativo primário, com regras abstratas e caráter genérico, que extrapola o sistema de freios e contrapesos previsto na Constituição. Esse princípio prevê o controle mútuo entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, com o objetivo de evitar abusos na autonomia conferida a cada um dos Poderes. Na avaliação do procurador-geral, ao promover ampla impunidade, sem critérios objetivos, a norma questionada afronta o sistema de Justiça e os compromissos assumidos internacionalmente pelo Brasil de promoção dos direitos humanos. Por esse motivo, o dispositivo pode ser submetido ao controle da Justiça, quanto à sua constitucionalidade.
Direitos fundamentais – Em outro trecho do documento, Aras afirma que, embora o indulto seja um ato político do presidente da República, sua concessão não é um poder ilimitado ou isento de controle judicial. A própria Constituição impede a concessão da medida a casos que envolvam crimes de tortura, de tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo e crimes hediondos.
Apesar de o decreto questionado na ADI não abranger esses crimes, a avaliação do PGR é de que a medida afronta outros princípios constitucionais, como a separação de Poderes, os pilares do Estado de direito e do sistema de Justiça, e o dever de proteção dos direitos fundamentais. “O dispositivo exorbitou manifestamente os limites do sistema de freios e contrapesos, e malferiu os pilares do sistema de Justiça e do próprio Estado de direito democrático, sem promover, em contrapartida, a realização de quaisquer valores humanitários, tampouco prestigiar objetivos de política criminal”, afirma.
A avaliação é a de que indultar genericamente condenados, independentemente da quantidade de infrações penais praticadas e do montante total de pena concreta imposta na condenação, significa ignorar deveres estatais de proteção a direitos inerentes ao ser humano. É o caso dos direitos à vida, à segurança e à integridade física, previstos não somente na Constituição, mas também em normas internacionais ratificadas pelo Brasil.
“O decreto está na contramão do processo evolutivo dos direitos fundamentais plasmados na ordem jurídica interna e internacional, com violação do dever constitucional de observância dos tratados internacionais de direitos humanos e da cláusula de vinculação do Brasil a tribunais internacionais”, conclui Aras.